segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Eu disse que não precisava de literatura de auto-ajuda: meu coração já sabia o que fazer da vida.

Eu queria saber se João estava em casa, mas o zunzunzum do salão abafou a minha
pergunta. O jeito era descobrir por contra própria. Quando Salete cobriu os olhos com as
rodelas de batata, entrei no jardim do sobrado e subi os degraus da varanda. Pelo caminho,
eu tinha ensaiado algumas falas, mas todas as minhas idéias pareciam forçadas ou ridículas
ou dramáticas. Decidi esvaziar a cabeça pra seguir o conselho da vó Nina: relaxar o corpo e
confiar na língua.
Em câmera lenta, levantei o braço e estiquei o dedo ansioso.
Antes que eu tocasse o botão da campainha, João abriu a porta e me perguntou se eu tinha
decifrado os hieróglifos. Será que ele estava me esperando? Respondi que não havia
hieróglifo nenhum, qualquer leitor podia entender a sua letra e era justamente pra falar
sobre isso - tirei do bolso o envelope de seda - que eu estava ali.
João não negou a autoria dos bilhetes, mas justificou o anonimato dizendo que se recusava
a assinar Júnior. Ficou um instante de olhos baixos e por fim confessou que, pra falar a
verdade, não teve coragem de se identificar - nem mesmo depois que lhe dei o apelido de
João. Achava que eu gostava de outro e que poderia, sei lá, me ofender.
Tanta sinceridade me deixou comovida - e completamente muda. Por mais que confiasse na
língua, não achei nem um monossílabo pra traduzir o que sentia.
Era como se estivesse enxergando o João pela primeira vez. Enquanto ele tentava se
explicar, prestei atenção na sua boca e notei que os lábios tremiam. A tensão dilatava as
narinas e parecia espremer os olhos entre as sobrancelhas e as olheiras. Observando um
pouco mais de perto, percebi que a franja comprida tapava as espinhas da testa e quase
pude contar os fiapos do futuro bigode. Não havia nenhum traço especial naquele rosto, tipo covinha nas bochechas ou sorriso de creme dental, mas o conjunto tinha personalidade
e podia ser considerado bonito. Ou, pelo menos, bonitinho.
João achou o meu olhar estranho, mas eu disse que não era nada e tirei a franja dele da
testa. Ele não escondeu o alívio: "Quer dizer que você não ficou com raiva?". Fui obrigada
a confessar que não; pelo contrário, os seus bilhetes eram muito inspirados e combinavam
poesia com humor na dose certa.
O elogio reduziu a pó a inibição de João. Ele sabia que a minha literatura tinha o poder de
transformar ficção em realidade (Salete lhe contou tudo no dia em que ressuscitei o
Frederico) e concluiu que isso me permitia mandar no meu coração. Era só escrever uma
frase - Estou gostando do João - e a gente ficaria quite.
Não há nada no mundo mais irresistível que declaração de amor de um tímido. Depois de
me beijar de leve na testa, João passou para a bochecha, daí pulou para a ponta do nariz e
só então criou coragem de arriscar a boca. Ele não tinha a técnica do Guto, muito menos a
experiência, e quase me sufocou com tanta ansiedade. Mas isso não fez diferença. Eu
também estava ofegante e adorei aquele beijo improvisado, mambembe e, em todos os sentidos, amador.
Fui a primeira a abrir os olhos e tive uma deliciosa surpresa: o garoto beijava de olhos
fechados! A gente passou algum tempo em silêncio, sem saber o que dizer ou onde pôr as
mãos, até que João voltou a me pedir pra escrever a tal frase. Eu disse que não precisava de
literatura de auto-ajuda: meu coração já sabia o que fazer da vida.
Às vezes eu me sinto predestinada e divina, uma bruxa capaz de criar ou destruir com as
palavras que joga no caldeirão. Mas nem tudo se resolve com bruxaria. Eu não tinha
conseguido, por exemplo, salvar o casamento da minha mãe nem prolongar a adolescência
da vó Nina. Por outro lado, não precisei usar a ficção pra livrar Salete do ex, evitar que
Leninha visse o pai com a nova amante, descobrir o autor dos bilhetes anônimos e, de
quebra, ganhar um namorado. Tudo isso se arranjou por conta própria e me fez entender
que não é possível concorrer com as surpresas do dia-a-dia. Mesmo quando o meu texto
funciona, o resultado é uma realidade apenas provisória, que mais cedo ou mais tarde vira
bagunça e me obriga a produzir outro texto; este gera uma nova realidade, e assim
indefinidamente. Não que eu esteja reclamando; afinal, foi graças a esse jogo de gato e rato
que ganhei o primeiro beijo do João.

Abertas as janelas do ônibus, deixei o vento atrapalhar o cabelo e ouvi o coração latejando.
A verdade é que eu estava inquieta e aflita - uma estranha sensação de formigamento na
alma. Aos poucos, comecei a ficar irritada, senti um arrepio na nuca e lembrei que ainda
não tinha almoçado.
Essa irritação já durava alguns dias e, portanto, não podia ser fome. Sem entender o meu
comportamento, desci do ônibus reclamando por ter recebido o troco em moedas,
resmunguei ao ver seu Esteves dormindo na portaria e apertei mil vezes o botão do
elevador encalhado no último andar.
Já era quase noite quando entrei em casa. No bico do pinguim da geladeira, havia um
recado da minha mãe: Fui buscar o Xandi na escola e não demoro. Seu almoço está dentro
do microondas. O almoço, àquela hora, seria jantar. Só que eu não tinha mais fome.
Uma pontada na bexiga me levou ao banheiro. O espelho mostrava uma imagem
emburrada, mas esse mau humor durou pouco. Ao olhar para o fundo do vaso, vi que tinha
feito xixi vermelho e me senti a garota... me senti a mulher mais poderosa do mundo.
De agora em diante, eu podia me orgulhar de conhecer pessoalmente a TPM!
Saí correndo até o quarto da vó Nina, que estava deitada de lado e esburacava a parede com
o dedo. Ajoelhada à beira da cama, revelei a identidade do autor dos bilhetes, descrevi a
sensação de um beijo amador e contei que precisava ir até a farmácia pra comprar um
absorvente íntimo, meu grande sonho de consumo!
A pacata senhora da terceira idade mostrou um sorriso manso, mas distante. Será que estava
me ouvindo?
Olhei através da janela e vi a noite chegando; a Lua cheia brilhava nas unhas enormes que
eu tinha dado à minha avó de presente.
Ela se virou para a parede e recomeçou a cavar.
A poderosa 1- Diário de uma garota que tinha o mundo na mão, Pág. 88-89

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